Há cerca de dois anos escrevi aqui um post sobre este livro que tinha lido no Reino Unido, e que recomendava vivamente que todos os Benfiquistas lessem. Hoje, data que marca o terceiro aniversário desde o desaparecimento de Robert Enke, achei que seria um bom dia para lembrar esse homem, especialmente agora em que o livro até já tem edição portuguesa e está por isso acessível a todos.
Se existe algum dos leitores deste blogue que de alguma forma sofra de depressão, nem precisa de ser Benfiquista, simplesmente compre o livro que não se vai arrepender. É esse post que relembro de seguida.
Há dias assim, e hoje, sem esperar passou-me pelas mãos o livro de Robert Enke, ex guarda redes do Benfica que se suicidou em Novembro de 2009, livro esse que será lançado aqui em Inglaterra na próxima semana. Comecei a folhear o livro, sem ler nada em profundidade mas, rapidamente o meu interesse foi aumentando e, a certa altura devorava folha atrás de folha.
Não é um livro escrito sobre a carreira do jogador. É um livro sobre a vida do homem, marcada por momentos fulgurantes dentro do relvado mas, marcada sobretudo pela depressão que sempre o acompanhou desde tenra idade. Tantas vezes idolatramos o jogador A ou B, tantas vezes aplaudimos ou assobiamos, tantas vezes idolatramos ou matamos o jogador esquecendo a pessoa que se esconde por detrás do nome e, esta história, a história de Robert Enke tocou-me vivamente, a forma como alguém que aos olhos do mundo sempre teve tudo mas, que viveu sempre no medo e da forma mais solitária possível de imaginar.
O livro é um relato dos amigos, é um relato da esposa também, transcrevem-se diálogos e, são trazidas a público dezenas de passagens escritas pelo próprio Enke que guardava os seus pensamentos mais íntimos num diário. Pelo meio, claro, contam-se histórias da sua passagem pelo Benfica, e para um Benfiquista, esses capítulos só por si valem o preço do livro. Relatos do seu grande e quase único amigo no balneário encarnado, Moreira, amigo esse que ficou para a vida mesmo quando Enke estava já fora do Benfica, histórias da vontade de Enke fugir imediatamente de Portugal assim que aterrou, histórias do caricato momento da assinatura do contrato em frente à imprensa, com Vale e Azevedo a ficar “azul” com a hesitação do alemão na hora de colocar a tinta no papel, que esteve a milésimos de segundos de se levantar da cadeira e fugir.
Histórias também sobre aquilo que era o Benfica da altura: os pagamentos em atraso, sendo política da altura deixar de pagar salários a jogadores que deixavam de interessar para os forçar a sair (Cliente especial: Carlos Bóssio), os 7-0 de Vigo e como doeu ao guarda-redes esta derrota, a anarquia do balneário, a catadupa de treinadores, a curta passagem de Mourinho pelo Benfica, o caricato de um dia em que o pagamento do salário de Robert Enke foi parar às mãos do sueco Anders Anderson. Fala de algum amadorismo existente, de um treinador de guarda redes chamado Samir Shaker que era o alvo do anedotário do balneario. Tinha um treino que era fazer os guarda redes voar amarrados ao poste da baliza por um elastico. Teve o Enke que pedir ao Moreira para falar com o treinador para colocar colchões à volta dos postes, porque os guarda redes estavam a ir contra os postes como moscas. Fala num treino antes de um jogo com o Nacional em que havia um balde para molhar a bola antes de cada remate, que era para treinar os guarda redes a jogar sob chuva intensa! Algumas histórias felizes, outras nem tanto, mas sempre interessantes, é ler para crer.
Diz o Enke no livro: há 3 coisas que um profissional de futebol nao pode fazer, trocar o Barça pelo Real ou vice versa, o Celtic pelo Glasgow Rangers ou o Benfica pelo Porto. Ainda assim, a Enke chegou um intermediario do Porto a dizer que havia uma oferta das Antas de 10 milhões de euros limpos em 3 anos, já descontados os impostos. Enke achava que era um passo impossivel de ser dado mas, o empresario convenceu o Enke a ir à reunião com Pinto da Costa, só para o ouvir, sem compromisso. A reunião em casa do mafioso foi numa sala às escuras, quase sem luz e com os estores corridos. O Enke esperava pastéis de bacalhau e bolinhos, e esta foi a recepcão que teve, tudo clandestino, reunião da camorra, sem paparazzis do lado de fora, tudo de modo a que nao haja provas de nada e quando se vai a tribunal se possa sair ileso. Afinal os 10 milhões foram só para atrair o alemão à reunião e a oferta era bem menor. Enke saiu imediatamente da casa de Pinto da Costa. Pinto da Costa fez ainda chegar ao Enke uma oferta melhor uns dias mais tarde mas Enke já tinha metido na cabeça que nunca trocaria o Benfica pelo Porto.
Enke chegou a custo zero e partiu também a custo zero. Segundo ele, percebeu que tinha de sair do Benfica quando lhe foi dada a braçadeira de capitão. Entregar a braçadeira a um estrangeiro de 24 anos era, segundo o alemão, sinal da crise de identidade, sinal de que já todos os outros tinham saído, sinal da ausência de bandeiras no balneário, sinal inequívoco de que algo estava muitíssimo mal no clube. Enke era capitão, uma pessoa que sofria de depressão e que só falava com dois ou três jogadores no balneário!! Enke tinha de dar o passo seguinte, tinha de ir para um campeonato mais competitivo. Nessa altura já a depressão controlava a sua vida, queria urgentemente regressar à Alemanha mas, na Alemanha Enke era apenas mais um, alguém que jogava num campeonato periférico da Europa, num clube que acabara em quarto lugar.
Através de Moreira, ficamos a conhecer o homem, que de Portugal só se queixava, aliás, o seu estado mental obrigava-o a queixar-se de tudo: que os portugueses não falavam inglês, que os portugueses eram loucos na estrada, que os portugueses tratavam mal os animais, que os portugueses eram isto e aquilo, enfim, um homem que tinha tudo mas que era como se não tivesse nada, ou pelo menos era incapaz de apreciar a vida.
Robert Enke foi um grandíssimo guarda redes no Benfica. Deixou saudades. Eu, por acaso, tive oportunidade de durante o seu tempo em Portugal, trocar algumas palavras com ele, porque ele ia sempre com os seus sete cães a um veterinário bem perto da minha casa. Muitas vezes o vi por lá, e Enke foi sempre sorrisos e uma pessoa extremamente cordial. Essa simpatia fazia-me ter ainda mais apreço por ele. O seu suicídio foi por isso um choque. Desde que saiu do Benfica, a carreira e a vida de Robert Enke foi sempre a descer. Na cabeça de Robert Enke, ou se era o melhor do mundo ou o pior do mundo, não havia meio termo. E o facto de nunca ter tido oportunidades em Barcelona minou e muito a sua personalidade e a sua confiança. De Barcelona foi para a Turquia e da Turquia para a Alemanha mas a sua depressão nunca mais o largou. A morte da filha foi a estocada final.
No fim do livro, já nos seus últimos capítulos, e sustentado em muito por aquilo que Enke escrevia no seu diário, a confissão, de que os anos mais felizes da sua vida tinham sido passados em Portugal e no Benfica, num clube e num país inigualável. Fala-se num regresso a Lisboa para uma homenagem alguns anos depois de ter saído, das lágrimas de Enke e da esposa ainda no avião, assim que começaram a ver Lisboa pequenina lá em baixo. Era ali, era aquele o lugar onde tinham sido felizes, percebiam agora. Estavam em casa.
Robert Enke já tinha casa em Portugal ali para os lados de Sintra, e aí passara férias nos seus últimos dois anos de vida. Pensava em regressar, de preferência para jogar futebol (nem que fosse no Belenenses) mas também para viver depois de terminada a carreira.
Finalmente Robert Enke tinha um plano e sabia o que queria… Infelizmente já foi tarde demais.
Até sempre Robert…
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