Já quase toda a gente se despediu ou homenageou o MAIOR desportista português de todos os tempos. Tanto em Portugal como no estrangeiro - arrepiou-me ver o vídeo de Old Trafford a aplaudir de pé, antes do jogo de hoje, enquanto o speaker lembrava o nosso King.
Como não podia deixar de ser, também eu o vou fazer e optei por recordar as palavras dele numa entrevista dada à Revista Única, em 12/11/2011. Selecionei apenas alguns excertos, que achei interessantes. Saibamos todos, benfiquistas e outros, respeitá-lo e lembrá-lo como ele merece. Aqui vai:
O que é que ainda lhe falta fazer? Tem algum projeto ou sonho por concretizar?
Hum... Todos os dias, logo quando acordo, olho para o espelho, estou bem, vou tomar banho, fazer a barba, lavar os dentes, tomar o pequeno-almoço, de vez em quando vejo uns treinos do Benfica ou fico em casa só a ver TV. Neste momento, a única coisa que gostava — e sei que é muito difícil, mas não impossível — é um sonho. E deixem-me sonhar: o que gostava mesmo era de ver o Benfica numa
final da Taça dos Campeões Europeus, ou Liga Milionária, como dizem agora. É uma das satisfações que gostava de ter antes de morrer.
(…)
Como era o convívio e a rivalidade entre clubes?
Era um espetáculo. Às segundas-feiras, juntávamo-nos todos — do Sporting, do Benfica, do Belenenses —, almoçávamos frango assado no Bonjardim, na Travessa de Santo Antão, e depois íamos ao cinema, ao Éden. E andávamos sempre de metro ou de elétrico, porque era mais barato. As pessoas paravam na rua só para nos verem juntos. Para tirar a carta tive de pedir autorização à minha mãe: “Mas você vai tirar a carta porquê? Não há aí machimbombo [autocarro]?” Lá a convenci, e depois comprei um VW. Agora, os jogadores gostam de se passear de Ferrari, Lamborghini. Uma pessoa tem de saber estar, tem de ter humildade.
(…)
Acredita no amor à camisola?
Acredito mais no profissional de futebol, porque o amor à camisola já lá vai...
E nos anos 60?
Nem no meu tempo todos tinham amor à camisola. Eram poucos os que tinham. Hoje então nem pensar nisso!
(…)
A técnica trabalha-se?
No nosso bairro jogávamos por castanhas, berlindes. Era assim: “Malta, tenho aqui cinco berlindes, eu dou 50 toques, 25 com pé esquerdo, 25 com pé direito. Se perder dou-vos os berlindes, se ganhar são vocês que me dão os vossos.” À primeira tentativa, eu fingia e deixava cair. Porquê? Para puxar a clientela. Quando via aí uns 20, pensava: “OK, agora já vale a pena.” Esperteza! Todos os dias punha a bola de ténis no pé direito e dava 50, 55, 70 toques; depois, pé esquerdo, 20, 25 toques...
Porquê?
Ninguém me obrigava, eu é que queria. Por exemplo, no Benfica, estavam já os meus colegas a comer em casa e eu continuava no campo, a chutar. Imaginava uma barreira, um guarda-redes, batia livres e penáltis. E a única pessoa com quem tinha confiança para me ajudar com isto era o Simões. Como é que eu podia chegar ao pé do falecido Águas e dizer: “Ó senhor José Águas, importa-se?” Não podia, ele era o capitão, tratava-o por senhor. Só tratava por tu o Simões. Às vezes até és bem-educado em casa, mas quando jogas um bocado mais julgas logo que és o melhor. Não pode ser. Tens de saber estar, com os pés no chão, ser humilde. Sempre.
Foi a sua mãe, Elisa, quem lhe transmitiu esses valores?
Graças a Deus. Somos uma família de oito irmãos e tivemos sempre educação: três são engenheiros, e eu sou o único que tenho a 4ª classe. Mas hoje orgulho-me de ser o gajo que não estudou, mas que é o mais conhecido da família no mundo [risos]. Mas, atenção, se o tempo voltasse para trás, como cantava o Mourão, tinha estudado.
(…)
E como é que chega a Portugal? O Sporting quis...
[interrompe] O Sporting não queria nada, é tudo mentira!
Não é isso que reza a história...
Assinei contrato com o Benfica, não assinei nada com o Sporting. É tudo mentira!
(…)
Acreditou que ia ganhar o Mundial de 1966?
Só não ganhei porque vivo num país pequenino. Foi por isso que olhei para cima, que me caíram as lágrimas.
O que é que aconteceu antes do jogo com a Inglaterra? Porque é que se mudou de estádio?
É a mentalidade portuguesa, os ingleses não têm culpa nenhuma. A nossa Federação vendeu-se e pronto. A FIFA permitia que as duas federações discutissem o campo, e combinaram a coisa. O Goodison Park, estádio do Everton, era onde íamos jogar e levava 45 mil espectadores; fomos para Wembley, onde cabem 100 mil. A Federação portuguesa recebeu o dinheiro e limpou as mãos.
Quando é que souberam da alteração?
Estávamos em estágio, a recuperar do jogo com a Coreia. Eram umas cinco e meia da tarde. Chamaram o Coluna e o Otto Gloria e avisaram-nos. Só que não podíamos dizer nada. Estávamos noutros tempos, da outra senhora. Não podias piar [risos]. Os ingleses até sabiam onde era o nosso hotel em Londres, em Piccadilly Circus. Foram lá à noite e fizeram uma barulheira tal que tivemos de ir para outro hotel a meio da madrugada, a 30 quilómetros de Londres. Já viram como é? O Otto Gloria só nos disse: “Vamos entrar dentro de campo e seja o que Deus quiser. Não vos posso exigir nada!”
E como foi jogar contra o Pelé no Mundial?
Nessa altura já estava farto de jogar contra ele! Um génio. Mas eu sempre lhe disse: “Pelé, tu não és melhor do que eu e eu não sou melhor do que tu. Não há comparações, isso é para jornalistas. O Garrincha é melhor do que nós e tem uma perna torta!” Falei-lhe nestes termos no Brasil, em direto, na Globo. O Pelé teve de engolir! “Tu só me ganhas porque és brasileiro e campeão do mundo. Mas a jogar à bola? Naaa...”, disse-lhe.
(…)
Pensou sair de Portugal?
Oh! Oh! Bom, houve a Juventus e depois o Inter de Milão. Mas o ‘padrinho’, a alcunha que eu pus ao Salazar, não deixou. Acho que ele gostava do país e gostava tanto que não me deixava ir porque pensava que era importante para o país.
Quantas vezes é que esteve com ele?
Eh, pá, fui oito vezes ter com ele à Assembleia. Eu, o Coluna e o diretor do Benfica. O Coluna só me dizia baixinho: “Não digas nada.” Só queria dizer-lhe que não o conhecia de lado nenhum, o que era verdade. Era muito ingénuo, eu sei, mas não tinha roubado ninguém, não tinha cometido nenhum crime. Só queria perguntar-lhe porque é que não me deixava sair. O Coluna repetia: “Está caladinho.”
Mas assinou contrato com o Inter.
Assinei e até estive em Itália. Foi em 1966, depois do Mundial. Estive no lago Como, a ver como seria a minha futura casa.
Bom sítio.
Ó pá, do melhor. A minha mulher [Flora] até escolheu a casa, uma bruta de uma vivenda. Só que o contrato ficou pendurado. O pior foi ter de ir às escondidas. Fui para Itália na mesma altura em que Salazar inaugurou a ponte sobre o Tejo, no dia 6 de agosto de 1966. Nós, os jogadores e a comitiva da seleção fomos convidados para ir à inauguração. Os outros foram, eu não. O Benfica escreveu uma carta a explicar que eu tinha as passagens compradas para Itália, porque ia passar uns dias com a minha mulher [risos]. O Inter ia pagar-me três milhões de dólares na altura! E era para ir eu e o Bobby Charlton. Estive lá com o Fachetti, com o Corso [craques do Inter] e com o Moratti, pai deste Moratti [atual presidente do Inter de Milão], que na altura era presidente. Eu até falava italiano, porque tivera aulas sem ninguém saber.
Estava com ela fisgada...
[risos] Estava, pois.
(…)
Saiu para os Estados Unidos.
A experiência do soccer foi muito bonita. Eles tinham uma lei fantástica: os grandes jogadores não podiam jogar na mesma equipa. Eu era para ter ido para a mesma equipa do Pelé, o Cosmos [de Nova Iorque], mas fui para Boston. Com o mesmo contrato, claro, a ganhar muito bem. Tinha casa, motorista, que dispensei, porque gostava de guiar. Até nos davam guarda-costas. O Pelé tinha dois! “Porque é que tu queres guarda-costas?”, perguntava-lhe eu. O Pelé, às vezes, é vaidoso. Quando estamos naquele grupo dos dez melhores do século, gostamos de ‘picá-lo’ na brincadeira. “Devias ter jogado aqui na Europa, para ver o que era o inverno, levar porrada com o frio e com a lama!”
Porque é que regressou a Portugal para jogar no Beira-Mar e no União de Tomar?
Vocês não sabem nada...
Mas o Eusébio vai contar...
Então é assim: eu tinha cinco meses de férias por época no soccer. Nessas alturas, andava a treinar o Benfica. O Sporting queria-me, o Belenenses também, mas eu não podia assinar contrato, porque tinha contrato com os americanos. Eu só podia assinar jogo a jogo: recebia um x por jogo. Então, o Apolinário, que era presidente do Beira-Mar, propôs pagar-me 350 contos por jogo, e dava-me a hipótese de escolher o jogo e tudo. Joguei sete jogos e meio no Beira-Mar. Um dia, íamos jogar com o Benfica e o treinador do Beira-Mar era o Manuel Oliveira, sportinguista. “Eusébio, você vai jogar contra o Benfica, OK? Jogou contra o meu clube, portanto, vá, tem de ser”, disse o Manuel. E eu: “Sim, mas eu não gosto do Sporting!” Eu tinha marcado um golo ao Damas [Sporting], o Beira-Mar tinha ganho por 1-0 e o Benfica passara para a frente do campeonato — foi campeão. Mas, pronto, lá tive de jogar contra o Benfica... mas em Aveiro! Acontece que há um livre à entrada da área do Benfica e o Beira-Mar tinha o Sousa, o Abel... E o Manuel Oliveira grita: “Quem marca é o Eusébio!” E eu olhei para ele e fiz isto [toca com o indicador na testa, como quem diz, “tu és maluco”]. Alguma vez eu ia marcar um golo ao Benfica? Por amor de Deus! Empatámos. No balneário, o Manuel Oliveira pergunta-me o que é que eu estava a fazer com o dedo, e eu disse-lhe que tinha comichão na cabeça [risos]. É que o livre estava mesmo na ‘zona da verdade’, era só pôr a bola a contornar a barreira. E no União de Tomar joguei apenas em dois encontros.
(…)
O joelho mostra que levou muita pancada durante a carreira.
Fui operado seis vezes ao joelho esquerdo. Hoje, uma lesão no menisco é uma semana; antes, meses. Às vezes, davam-me de propósito, outras sem querer. Não gostava era de entradas pelas costas. Isso dava-me vontade de dar uma tareia, mas, lá está, uma pessoa tem de saber estar.
Obrigado Eusébio!
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