"É uma pena. Uma perda. Mesmo, não estou a brincar. Dava gosto ver Jorge Jesus quando chegou ao Benfica: a pastilha marota mastigada de boca aberta, o cabelo revolto com madeixas ainda pouco definidas, as rugas rudes, marcadas e agrestes, a roupa mal amanhada. E as corridas desconcertantes, os palavrões e os insultos aos jogadores durante os jogos? Lembram-se? O Cardozo falhava um golo de baliza aberta e Jesus explodia; o Di Maria punha-se a inventar mais do que devia e era posto na ordem; o Aimar – sim, até o Aimar – não corria como os outros e Jesus mostrava-lhe furiosamente como se fazia ao longo da linha lateral. Ele espumava com o jogo. E os adeptos, numa espécie de orgia salivar, espumavam consigo.
Para os benfiquistas, aquele homem estranho e egocêntrico era a resposta a anos de letargia e vazio. Havia ali força, paixão, nervo. É verdade que não era um cavalheiro, mas um bom treinador não tem de ser um mestre do protocolo – ele próprio o sublinhou, quando confrontado pelos jornalistas com a sua, digamos, dificuldade ligeira em articular duas frases em português correto.(…)
(…) Passados três anos, tudo mudou. Nas suas míticas flash interviews, Jesus já não diz “hádem” ou “póssamos”, passou a vestir fatos impecáveis, aprimorou o cabelo, arranjou os dentes e terá feito, segundo o Correio da Manhã, várias plásticas à cara e aplicado botox. Aburguesou-se. E, com ele, arrastou a equipa. Na última terça-feira, quando olhavam para o banco, os jogadores do Benfica já não viam aquele personagem vibrante que há três anos lhes gritava furiosamente e os obrigava a correr e a ganhar. No seu lugar, encontrava-se o novo senhor Jorge, o cavalheiro que um dia, numa das suas épicas entrevistas, se definiu justificadamente como uma espécie de Paula Rego do futebol – de facto, o Benfica jogava bonito. Para grande tristeza dos benfiquistas, desse Jesus resta apenas a sua inseparável pastilha, porque a pintura, que é o que mais conta, está irremediavelmente desfeita. Só Luís Filipe Vieira é que ainda não percebeu.
FERNANDO ESTEVES/EDITOR DA SÁBADO NO RECORD DE 25/10/2012"
Sob o título “Jorge Jesus aburguesou-se”, esta é parte de uma excelente crónica de Fernando Esteves no Record, que li com agrado, mas com a qual me permito discordar em vários aspetos.
É fácil, muito fácil, comparar o Benfica da primeira época de Jorge Jesus com o das seguintes, especialmente quando os resultados não aparecem. É fácil colocar nos ombros dos treinadores a responsabilidade por todos os insucessos das equipas, fácil mas extremamente limitativo. E estou à vontade naquilo que digo, porque já há algum tempo aqui escrevi que não auguro nada de bom para o Benfica este ano, e não auguro porque não acredito que uma equipa que a 31 de Agosto perde dois jogadores como Javi Garcia e Witsel sem os substituir convenientemente, possa manter o mesmo nível de ambição, competitividade, e sobretudo consistência numa época com mais de 50 jogos.
E por isso, nestas circunstâncias, quando as Direções insistem na praça pública em discursos demagogos de três campeonatos em quatro anos e finais europeias, há alguns adeptos que certamente rejubilam e vão a correr colocar o voto mas, era importante que as políticas executadas por quem dirige sustentasse a ambição dos discursos. E neste caso, não sustentam, são discursos baratos que intoxicam a opinião pública, e que até fazem acreditar os mais desatentos que ter Matic é o mesmo que ter Javi, que ter Witsel é o mesmo que ter Enzo Peres, e que estamos prontos para a luta. Não estamos.
Já aqui disse em outras ocasiões, é fácil ser treinador de um Real Madrid ou de um qualquer Manchester, em que a cada ano se mantém tudo o que de melhor se tem, ao qual se acrescenta mais 50 ou 60 milhões de “mercadoria” da melhor que os outros têm. Tarefa bem diferente é ser-se treinador de um Benfica, clube que em termos de exigência da massa adepta não anda longe da dos grandes colossos europeus, mas em que cada fim de época (e às vezes no meio) se perde o que de melhor se tem, com os adeptos nas bancadas a exigirem que o rendimento das equipas se mantenha e se possível continue a ser em crescendo.
O que mudou no Benfica em quatro anos? Apenas Jorge Jesus?! Não acredito. Acho que mais do que JJ, o que mudou realmente foi o grau de exigência dos adeptos, que passaram imediatamente de 20 anos seguidos de desilusões e claramente poucas ou nulas ambições, para um grau de exigência máximo como se tivéssemos passado a ser de novo uma das grandes potências do mundo.
Talvez essa exigência se tenha devido em parte a Jorge Jesus, que nunca escondeu no seu discurso toda a ambição que trazia e os sonhos que acalentava. Teria sido bem mais fácil ter optado pelo discurso politicamente correto do: “O objetivo é ir o mais longe possível.” E todos nós rejubilámos com o discurso ganhador, éramos de novo um clube erguido, sem medo de ninguém, e que em muitas ocasiões cilindrava qualquer adversário. Só que, como em tudo na vida, há também o reverso da medalha e, Jorge Jesus é também vítima de tudo o que de bom fez, porque a todos fez sonhar, e hoje cobramos-lhe por isso.
Aceitemos ou não, este Benfica não é a base do de há quatro anos nem de há três. Emerson ou Melgarejo não são Fábio Coentrão, não só em termos futebolísticos mas, bem longe de terem o seu entusiasmo e a sua fibra, de serem sangue, suor e lágrimas e acreditarem (e fazerem acreditar) nas vitórias até ao último segundo. Garay é excelente jogador mas, não é David Luís, não tem a empatia que o brasileiro tinha com os adeptos, não carrega a equipa às costas, não levanta estádios nem representa no campo a força dos 60000 que sofrem na bancada. Nolito ou Gaitan não são Di Maria, não são jogadores para 90 minutos de intensidade máxima nem para pegar no jogo quando este não corre bem a ninguém. Matic não é Javi (esta dispensa explicações) nem Enzo é Witsel, quanto a mim um dos poucos médios da atualidade realmente completos a quem apenas talvez falte maior capacidade para rematar de longe. E Sálvio também não é Ramirez, pau para toda a obra, jogador com um pulmão inesgotável, versátil, taticamente inteligentíssimo e com um espírito competitivo acima da média.
Reconheço claramente a realidade dos clubes portugueses e do Benfica mas, talvez seja por isso que em Portugal não existem projetos de longo prazo. Porque o Benfica da primeira época de Jorge Jesus foi um fogacho, uma grandíssima equipa que de repente apareceu com inegável mérito do seu treinador, que encantou Portugal e muito boa gente na Europa, mas também uma equipa que não teve oportunidade de crescer no tempo, não teve oportunidade de ser retocada em momentos cirúrgicos e atingir realmente o seu potencial máximo... que era muito. Foi sim uma equipa à qual rapidamente se tiraram as traves mestras e as virtudes, e que rapidamente foi obrigada a viver de remendos.
Jorge Jesus tinha legitimidade para sonhar alto como sonhou? Na minha opinião tinha, esteve até bem perto de criar as bases para concretizar o seu sonho mas, era preciso que lhe tivessem sido dadas as condições estruturais para o fazer em vez de apenas discursos demagogos de membros da Direção, promessas de ambições desmedidas e sucessos virtuais que apenas responsabilizam e fragilizam os treinadores. E arrisco-me até a uma pequena comparação com os nossos rivais do Norte. Mourinho só foi Campeão Europeu no FCPorto, porque Pinto da Costa lhe deu todas as condições para o ser. Teria sido bem fácil a Pinto da Costa vender por muitos milhões uma excelente equipa que tinha acabado de vencer a Taça Uefa. Mas Pinto da Costa soube resistir à tentação, esticou a corda mais um ano e colheu os frutos. No Benfica talvez não tivesse acontecido.
Jorge Jesus vai sair no final da época? Parece-me evidente que sim, porque em Portugal quatro anos é sempre demasiado tempo, até mesmo quando se ganha muito, quanto mais quando se ganha pouco. O que espero é que a escolha do próximo treinador seja feliz e que nos traga sucesso, que nos traga não só sucesso desportivo mas também os 30 ou 40 milhões que JJ garante em cada final de época, sucesso esse que terá de ser forçosamente imediato.
Porque se não for, rapidamente todos recordarão com saudade algumas coisas boas que tínhamos e a que hoje não damos valor, todos perceberão que o problema não estava no banco, e todos se lembrarão com nostalgia das tais virtudes que hoje muitos vêm como defeitos, o mastigar pastilha elástica com boca aberta, as calinadas no português e mandar os jogadores para o car$%#o, coisas que em termos do dicionário do futebolês não têm importância nenhuma.
Especialmente doloroso se, juntando a isto, tivermos ainda de constatar como podia ter sido também para nós, se tivermos de assistir às vitórias do “Messias” ao serviço do nosso maior rival, ao futebol total e triturador que em tempos foi nosso, e percebermos que, nestas coisas do futebol, tão importante como o trabalho dos treinadores é a competência da estrutura que os envolve.
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